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“We few, We happy few, We band of
brothers…..”
Shakespeare, Henry V
As manifestações do último dia 18 foram um
grande êxito. Independentemente da guerra dos números, sempre inflados de um
lado e desinflados de outro, cumpre destacar a grande diferença qualitativa.
Nessas manifestações, ninguém fez discurso de
ódio, ninguém pediu a volta da ditadura, ninguém questionou a presença dos
pobres na política, ninguém questionou direitos sociais e econômicos da
população em geral ou a afirmação dos direitos das minorias. Todo o mundo pediu
respeito à Democracia, ao Estado Democrático de Direito e aos direitos e
garantias que protegem a todos. Ninguém pediu a destruição de ninguém, a
redução de direitos ou retrocessos políticos e sociais. Ao contrário, a grande
palavra de ordem foi a da inclusão de todos na democracia. O grande sentimento
foi o da tolerância.
Assim, a manifestação do dia 18 de março foi
muito além da mera defesa do governo contra o golpe. Foi uma defesa dos valores
democráticos, dos direitos fundamentais da pessoa humana e de um projeto de
inclusão social, econômica e política de todos os brasileiros. Foi, na
realidade, uma operação Paideia, da qual o Brasil estava precisando tanto.
Com isso, essas manifestações apontaram
caminhos claros para uma união de todas as forças democráticas e progressistas
do país contra a onda reacionária e raivosa que tomou conta da opinião
publicada no Brasil. Mais: há nelas um mapa para superar a crise do país.
Em
primeiro lugar, é necessário resistir ao golpe.
Impeachment sem demonstração de crime de responsabilidade é golpe puro e
simples. Contra Dilma Rousseff, ao contrário do que aconteceu com Collor, não
há nada, absolutamente nada. Até FHC proclama aos quatro ventos que considera
Dilma honesta. A tentativa de justificar o golpe com base nas “pedaladas
fiscais” é francamente ridícula. Essa prática contábil amplamente disseminada
em todas as esferas de governo, pretéritas e presentes, não configura, nem de
longe, crime de responsabilidade previsto na Constituição para o afastamento do
presidente da república.
Resistir ao golpe não é mera defesa de
governo específico. É defesa da democracia. O golpe parlamentar que se está
gestando sob a liderança de Eduardo Cunha, este sim uma figura política contra
a qual pesam gravíssimas e substanciadas acusações de enriquecimento ilícito,
seria um duro golpe contra as instituições democráticas e a própria imagem do
Brasil. Num regime presidencialista, não se depõe presidente porque há crise ou
porque o supremo mandatário tem conjunturalmente um baixo índice de
popularidade. O golpe, se concretizado, nos igualaria a países como Honduras, e
criaria uma fratura política de difícil superação. A crise tenderia a se
prolongar e a governabilidade ficaria comprometida com uma espada de Dâmocles que
nos ameaçaria com constantes golpes parlamentares, os quais poderiam se realizar
ao sabor de crises políticas artificialmente gestadas, no bojo do
presidencialismo de coalizão. O Executivo ficaria ainda mais refém de um
Parlamento fisiológico.
Golpe não é solução para a crise. É seu
agravamento e prolongamento.
Em
segundo lugar, é preciso desbaratar o embrião de Estado Policial que se criou
no Brasil. A operação Lava Jato começou muito bem, prometendo
desnudar as relações espúrias entre poder econômico e poder político. Contudo,
com o tempo ela foi se desvirtuando, até se converter em mero instrumento de
luta política. O caráter sempre seletivo das denúncias, os sistemáticos vazamentos
ilegais de informações sob segredo de justiça, a “espetacularização” do
processo, em conluio com a mídia partidarizada, o uso abusivo das prisões
provisórias como forma de forçar as delações premiadas, a escandalosa prática
de grampear advogados, comprometendo o direito à defesa, as conduções
coercitivas sem intimação prévia, em flagrante ilegalidade, o uso
desavergonhado dos dois pesos e duas medidas, e até mesmo as escutas ilegais
contra a presidente da república, emulando o que havia sido feito pela NSA,
configuram um quadro muito perigoso de atropelamento dos direitos e garantias
individuais, com procuradores e juízes que se colocam acima da lei, em nome de
uma óbvia agenda política.
Ora, o imprescindível combate à corrupção não
pode servir de escusa canhestra para a corrupção da democracia, da Constituição
e das leis. E combate seletivo à corrupção não é combate à corrupção; é
impunidade para quem está na Oposição e perseguição política para quem está na
Situação.
Esse embrião de Estado Policial, combinado
com a mídia partidarizada e com o chamado Partido Judicial, é ameaça concreta e
grave ao Estado Democrático de Direito, que merece a repulsa de todos.
Em
terceiro lugar, é imprescindível resistir à restauração neoliberal e aos
retrocessos contra as conquistas sociais recentemente alcançadas. O
golpe e o embrionário Estado Policial têm uma agenda política clara. Trata-se
de fazer voltar o país ao status quo ante.
Ao estado de ampla desigualdade e pobreza extrema que afetava vastas camadas da
população. Para os grandes grupos econômicos que dão sustentação ao golpe, como
a FIESP, por exemplo, a reversão ao neoliberalismo é essencial para cortar
custos, recompor margens de lucro e retomar investimentos e crescimento. Isso
imporia a revisão de direitos trabalhistas e previdenciários, cortes nos gastos
sociais, a fragilização do nosso Welfare
State embrionário, a privatização do patrimônio público, inclusive do
pré-sal, e a abertura da economia aos interesses das grandes potências
econômicas, em nome do ingresso fictício nas grandes “cadeias globais de
produção”.
Pode-se perguntar o que esse debate em torno
da política econômica tem a ver com a defesa da democracia. Tem tudo a ver. Não
há democracia consolidada no mundo com altos níveis de desigualdade e pobreza.
Ao contrário do que apregoa o liberalismo econômico, a liberdade não pode ser
dissociada da igualdade e da fraternidade (solidariedade). Há indivisibilidade
e sinergia entre direitos civis e políticos e direitos sociais e econômicos. A
verdadeira liberdade só se alcança com a superação da necessidade. Cidadão
livre não é apenas aquele que pode votar; é aquele que pode comer, morar, ter
saúde e educação. Portanto, qualquer retrocesso no processo de redução das
desigualdades, eliminação da pobreza (não apenas da pobreza extrema) e
consolidação de novos direitos para a população em geral e minorias específicas
(mulheres, afrodescendentes, gays, índios, etc.) representaria duro golpe
contra democracia.
Picketty demonstra que o capital no século
XXI está se tornando crescentemente incompatível com regimes democráticos, dado
o perigoso processo de aumento da desigualdade de renda e patrimonial, que fez
o mundo desenvolvido retroceder ao século XIX.
No Brasil, os males e as insuficiências de
nossa democracia e de nosso sistema político, inclusive aqueles relativos ao
fisiologismo e à corrupção, não estão dissociados dos nossos históricos males
sociais. Assim sendo, defender as conquistas sociais recentes, e as políticas
que as promoveram, significa defender os fundamentos concretos do avanço da
democracia no Brasil.
Em
quarto lugar, é necessário ter a clareza de que a defesa da democracia implica
seu aprofundamento. Essa é a questão crucial no Brasil de hoje. Os
governos do PT promoveram uma verdadeira revolução social no Brasil. Cerca de
36 milhões saíram da miséria e outros 42 milhões ascenderam à nova classe média
ou à nova classe trabalhadora. A desigualdade diminuiu fortemente, embora
continue muito alta, e as oportunidades foram consideravelmente ampliadas e
estendidas. Contudo, essa revolução social não se exprimiu na política. Esse
foi um grave e fundamental erro. Embora os governos do PT tenham aberto a
administração pública à participação de movimentos sociais e de organizações da
sociedade civil, o fato concreto é que essa revolução social não se exprimiu,
como deveria, no sistema político, o qual continuou capturado pelo poder
econômico e por interesses fisiológicos.
Uma profunda reforma política, com a
proibição de doações de campanha por parte de empresas, a reforma do sistema
partidário, a implantação de mecanismos mais ousados de democracia direta, a
imposição de cotas políticas mais abrangentes para as minorias, etc. poderiam
ter contribuído para retirar esses governos progressistas das armadilhas,
políticas e éticas, do presidencialismo de coalizão e das imposições do poder
econômico. A radicalização da experiência democrática teria sido a melhor
defesa da democracia.
Mas nunca é tarde para se corrigir erros.
A defesa da democracia e a radicalização da
experiência democrática em todas essas vertentes mencionadas podem aglutinar
uma ampla gama de forças progressistas que estavam até pouco tempo
desarticuladas, como se viu nas manifestações do dia 18. Obviamente, é difícil
dizer se tal articulação teria êxito, na atual conjuntura, para barrar as poderosas
forças do retrocesso econômico, social e político.
Vivemos, agora, uma situação parecida a que
os ingleses viveram em Agincourt, se defrontando com as tropas mais numerosas e
bem armadas dos franceses.
O mais importante é ter convicção de que se
está no lado certo. O decisivo não é o julgamento conjuntural da mídia venal e
dos cultores do ódio. É o julgamento da História, que, no longo prazo,
condenará implacavelmente os que se colocarem contra democracia.
Como escreveu Shakespeare em Henrique V, a
respeito da Batalha de Agincourt, o fundamental é estar entre os poucos, os
poucos afortunados, o bando de irmãos (e irmãs!) que tiveram a coragem e a
glória de enfrentar adversário mais poderoso, em nome de uma causa justa.
Eles venceram. Nós também podemos vencer. A
democracia pode vencer. A democracia vencerá.
Marcelo Zero
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