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Notório militante do socialismo, amigo de
Lula e Dilma, quando Frei Betto tece críticas ao PT a reflexão se faz necessária. Temas
como plano social e de poder, mensalão, meio ambiente, bolsa família, bancada
evangélica, prisão de José Dirceu, guinada à esquerda, organização dos
movimentos de esquerda, merecem debate, nortear formações e inspirar o PT de
Petrolândia sobre alianças e plano de governo, já que optou por construir candidatura
própria ao cargo de prefeito em 2016.
A entrevista foi concedida ao jornal FOLHA DE
SÃO PAULO. Para reflexão:
Folha
- Estão convocando mais uma manifestação contra Dilma para o dia 16. A
principal pauta, ou uma das principais, é o impeachment de Dilma. O que acha?
Frei
Betto - Eu acho que manifestação é sinal da democracia. Pena que
a esquerda aprenda com a direita algumas coisas ruins que a direita faz.
Deveria aprender as coisas boas – as poucas coisas boas– que a direita faz.
Como convocar manifestações para domingo, não para o dia de semana, o que a
esquerda tem feito [uma outra manifestação, com apoio do PT, deve ocorrer no
dia 20, uma quinta]. Dia de semana? Uma burrice. Atrapalhando o trânsito, como
naquela música do Chico Buarque. Não tem sentido, né? Faz no domingo, não tem
escola, as pessoas podem sair de casa, estão disponíveis. Pena que a esquerda
não aprenda com a direita as coisas boas.
E o
impeachment?
Olha, a minha pergunta íntima hoje não é o
impeachment. Eu acho que democracia brasileira está consolidada, não há motivo
para impeachment. A minha pergunta é outra. É se a Dilma, pessoalmente, aguenta
três anos pela frente. Eu temo que ela renuncie.
O
senhor tem algum sinal disso?
Não. É puramente subjetivo. Mas temo que ela
renuncie. Ou ela tem uma mudança de rota ou eu me pergunto se ela vai aguentar
o baque psicológico de três anos e meio [pela frente] com menos de 10% de
aprovação, com 71% dizendo que o governo é ruim ou péssimo. Isso é um sinal de
que você não está agradando nada. Não adianta fazer cara de paisagem. Alguma
coisa tem de ser feita. Ou ela dá uma mudança de rota, muda a receita do ajuste
etc., ou ela pega a caneta e fala "vou pra casa, não dou conta". Eu
tenho esse temor.
Há um relato, publicado anos atrás pelo
jornal "Valor", de que no auge da crise do mensalão, em 2005, a
Dilma, ministra da Casa Civil, teria sugerido ao Lula que renunciasse. Eu não
acredito nisso. Até porque o Lula saiu com 87% de aprovação.
Depois,
né? Naquele instante, quando Duda Mendonça foi à CPI dizer que tinha sido
remunerado no exterior com dinheiro de caixa dois do PT, ninguém imaginava que
o Lula iria recuperar a popularidade do jeito que recuperou.
É... Se isso é verdade [a sugestão de Dilma
para Lula renunciar], reforça o meu receio.
No
cenário atual, que combina crise política com estagnação econômica, denúncias
de corrupção e baixa popularidade de Dilma, o que mais atormenta o senhor?
O Brasil está vivendo uma notória
insatisfação, não só com o governo. Insatisfação com a falta de utopias, de
perspectivas históricas, de ideologias libertárias. Desde 2013, quando houve
aquela grande manifestação atípica. Porque não houve nenhum partido, nenhuma
liderança, nenhum discurso [em junho de 2013]. E foi uma enorme manifestação em
que as pessoas protestavam, havia protesto, mas não havia proposta. Isso chamou
muito a minha atenção. E quando –isso é até terapêutico– a gente entra em
amargura e não vê solução, não vê saída, a gente não consegue equacionar
racionalmente o que está vivendo. Não consegue buscar as causas e as
perspectivas. Fica tudo no emocional. Eu tenho dito a amigos que a minha
geração viveu grandes divergências políticas na ditadura, mesmo entre a
esquerda, divisão se siglas de A a Z. Mas o debate era racional. Debatia-se em
cima de projetos, programas, perspectivas históricas. Hoje, o debate é
emocional. É como briga de casal em que o amor acabou. Equivale a acelerar o
carro no atoleiro de lama: quanto mais acelera, mais se afunda na lama. Estamos
vivendo isso.
E o
governo?
O governo, que eu considero o melhor de nossa
história republicana –os dois do Lula e o primeiro da Dilma– teve grandes
méritos, como a inclusão econômica de 45 milhões de brasileiros; e teve grandes
equívocos, como a não inclusão política. Ao contrário do que a Europa fez no
começo do século 20, o governo do PT propiciou, ao conjunto da população
brasileira, acesso aos bens pessoais, quando deveria ter iniciado pelo acesso
aos bens sociais. A metáfora que utilizo é o barraco da favela. Ali dentro a
família tem computador, celular, toda a linha branca, fogão, geladeira,
micro-ondas, e, no pé do morro, tem um carrinho, devido à facilidade do
crédito. Mas a família está na favela. Não tem saneamento, não tem moradia, não
tem transporte, não tem saúde, não tem educação, não tem segurança. Resultado:
criou-se uma nação de consumistas, não de cidadãos.
O
senhor falou em melhor governo da história republicana e mencionou os dois
mandatos do Lula e o primeiro da Dilma. E o segundo da Dilma?
Esse segundo, até agora, eu não tenho nenhuma
notícia boa para dar. Eu não sei o que de positivo a Dilma fez de janeiro para
cá. Gostaria que alguém dissesse. O ajuste é necessário? É necessário. Mas o
ônus é só sobre o trabalhador. E fica a dúvida se vai dar certo. É um país com
um mercado interno fantástico, mas que mantém a síndrome colonial de que a
gente tem de ser exportador de matéria prima, que deram o nome agora de
commodities. Equívocos. E o governo terceirizou a política para a troica do
PMDB –Temer, Cunha e Renan– e terceirizou a economia nas mãos de um economista,
o Joaquim Levy, notoriamente um eleitor do Aécio Neves. Realmente fica difícil
de acreditar que esse é um projeto do PT. Nunca fui militante do partido, devo
dizer isso. Também não sou fundador, como alguns dizem por aí. Sempre fui
eleitor. Mas nas últimas eleições eu tenho dividido meu voto entre PT e PSOL.
O
governo Lula foi um dos mais populares da história, e Dilma foi reeleita há
menos de um ano. Por que o humor mudou?
Agora as pessoas estão com muita raiva porque
não podem mais viajar de avião como estavam viajando; comprar ou alugar um
melhor domicílio, como estavam fazendo; adquirir crédito sem juros altos; ir à
feira com R$ 20 e voltar com a sacola cheia. Então a falha foi de quem? Na
minha opinião, a falha foi do governo que tinha a faca e o queijo na mão para
poder realizar aquele projeto mais original do PT, que era organizar a classe
trabalhadora. Leia-se: dar uma consistência política à nação brasileira,
principalmente às novas gerações. Isso não aconteceu.
Por
que, na sua interpretação, as coisas sob o PT se desenvolveram dessa forma, a
opção pela promoção do consumo, e não da outra?
Porque o PT perdeu o horizonte histórico. O
horizonte que ele tinha nos seus documentos originários. De transformação, de
realizar as reformas relevantes.
Mas
em que instante isso se perdeu?
Ah, no momento em que chegou ao poder. Foi
quando ele trocou um projeto de Brasil por um projeto de poder. Manter-se no
poder passou a ser mais importante do que realizar as reformas importantes e
necessárias para o país. Como a reforma agrária, a tributária, a educacional, a
sanitária etc. Em 12 anos, a única reforma que nós temos é a antirreforma
política do Eduardo Cunha (atual presidente da Câmara).
Por
que o PT não fez essas reformas?
É porque tinha medo de perder aliados, não
soube assegurar a governabilidade pelo andar de baixo. Procurou assegurar pelo
andar de cima. Se tivesse seguido o exemplo do Evo Morales (presidente da
Bolívia), que hoje tem 80% de aprovação, é o segundo presidente mais aprovado
da América Latina, depois do presidente da República Dominicana. No início ele
não tinha apoio nem do mercado nem do Congresso; buscou assegurar a
governabilidade por meio dos movimentos sociais. Hoje ele tem apoio dos três.
Teve
medo de adotar esse caminho?
Foi uma estratégia equivocada de se manter no
poder. "Vamos fazer aliança com quem tem poder, nós estamos no
governo". Uma coisa é estar no governo, outra é estar no poder. Isso deu
certo por um tempo. Só que há uma questão aí de classe que é arraigada na
estrutura social brasileira. E de repente os setores conservadores, vendo que
não há proposta, vendo que não há perspectiva histórica, resolveram avanças. É
este instante. Até o Lula foi vítima agora. Não de um atentado político. Mas de
um atentado terrorista. Isso [uma bomba lançada no Instituto Lula dias atrás] é
um atentado terrorista. Jogar uma bomba em cima de um domicílio que está
carregado de simbolismo político é um atentado terrorista. Se isso estivesse
acontecido na sede do partido Democrata dos Estados Unidos –ou no escritório do
Bill Clinton (ex-presidente dos EUA), uma boa comparação– no dia seguinte o
mundo inteiro estaria dizendo: "Bill Clinton sofre atentado
terrorista". Evidente que a imprensa brasileira não quis dar destaque, uma
certa imprensa. Por um lado alguns chegaram a insinuar que o próprio PT teria
feito essa bomba para tentar vitimizar o Lula e o partido. O mais grave é isso.
Não se deu o devido destaque talvez porque não interessa. Só interessa que o
Lula venha a aparecer como o acusado da Lava Jato, não como vítima de um
atentado terrorista.
O
senhor é amigo do Lula, tem essa relação histórica. Virou alvo de hostilidades?
Uma coincidência. Eu fiz dois lançamento de
livro na última semana, um no Rio, na segunda, e outro em Belo Horizonte, na
terça. Nos dois o pessoal da direita foi lá para perturbar.
O
que fizeram?
No Rio foi um oficial de corveta da Marinha,
segundo ele, dizer que estava me levando um abraço do Olavo de Carvalho. Eu
disse: "Abraço de urso, pode devolver". Olavo de Carvalho considera a
Rede Globo comunista; o papa Francisco, então, não é nem comunista para ele, é
a encarnação do diabo. E no fim o cara já estava dizendo "ah, você é um
frade de araque". Aí eu falei que não admitia, falei "ponha-se para
fora daqui". Então os amigos, as amigas principalmente, enxotaram o cara.
Em Belo Horizonte foi o pessoal do movimento patriota, com cartazes
anti-comunistas e um livro pesadão chamado "O livro negro do
comunismo". Foram para aprontar, mas ali também a turma, meus amigos de
lá, intervieram e eles não conseguiram fazer.
Ex-ministros
foram xingados em restaurantes também...
Exatamente. Estamos vivendo uma onda raivosa.
É por falta de consciência política da nação, de conscientização. Os partidos
viraram partidos de aluguel, a política se mediocrizou e a Lava Jato está
expondo os poderes de como se move o poder no Brasil, entre as benesses
políticas e as conquistas econômicas.
O
senhor disse que o PT, ao chegar ao poder, não seguiu o que diziam seus textos
originais. O senhor classifica isso como uma traição?
Não. Não é traição.
Não?
Não. Eu considero isso um desvio de rota.
O
senhor disse que não aplicou os textos originais.
Sim, é isso que eu falei. Mas traição, para
mim, é outra coisa, é uma palavra que tem um peso muito grande, não se adequa
ao que estou dizendo, ao meu discurso. O que considero é que houve um desvio de
rota. Trocou-se o projeto de Brasil, uma mudança de estrutura. Trocou-se a
reforma agrária e outras, que eram consideradas prioritárias, por um projeto de
preservação no poder. Aquilo que o próprio Lula chegou a dizer na reunião com
religiosos. Eu não estava nesse reunião. Ele disse: "o PT só pensa em cargos".
Ele disse a mesma coisa, mas em outras palavras. Isso eu analisei em dois
livros, "A mosca azul" e "O calendário do poder". Foi o meu
balanço.
E o
que seria uma traição?
Eu não sei porque você está falando em
traição.
Ué,
o senhor disse que não considera uma traição. No seu entender, o que
configuraria uma traição?
Traição seria se o PT tivesse... chamado o
FMI para administrar o Brasil. Sei lá. Se tivesse priorizado as relações com os
Estados Unidos. Se tivesse deixado de fazer a Comissão da Verdade.
Eu
li recentemente que o senhor teve uma conversa longa com o Lula...
Sou amigo do Lula, sou amigo da Dilma.
Sim,
mas o senhor colocou para eles desse jeito?
Claro, desse jeito. Eu coloco publicamente.
Eu fui lá conversar com a Dilma em 26 de novembro, com Leonardo Boff e outros.
Entregamos um texto nas mãos dela. Ficamos 1 hora e 10 minutos. Estava ela e
[Aloizio] Mercadante (ministro da Casa Civil).
E
como eles reagem a esse tipo de crítica?
Eles aceitam. Agradecem: "obrigado por
vocês terem vindo aqui, vamos ver se podem voltar em seis meses para
conversar". Mas fica nisso. E depois fazem tudo diferente. Sabe? O que
você quer que eu faça? Deite e chore? Foi uma conversa ótima. Aí ela aceitou
tudo aquilo, a gente falando da importância de reforma agrária, de quilombos,
de povos indígenas, o papel da mulher, programas sociais, não poder fazer
cortes em setores como educação e saúde. Aí respondem tudo: "é, é isso
mesmo, também estou pensando..." E está lá. O texto está lá, tenho
decorado na minha cabeça. Eu tenho uma boa relação com os dois [Dilma e Lula].
Eu falo tudo. Eles aceitam. O Lula também. Às vezes fala que a culpa de não é
dele, a culpa é não seu de quem, é do partido, é da Dilma, é da conjuntura; e
aí também fala "mas a gente também fez...".
E continua
tudo igual?
Eu tenho uma vantagem que é seguinte: eu sou
um sujeito que tem poucas vaidades. Uma delas é ambição zero. Aliás eu lembrei
isso pro Lula. Eu falei: "Lula, você me conheceu em 1979, o padrão de vida
que eu tinha é o padrão de vida que eu tenho. Eu moro no mesmo quartinho no
convento, se você quiser eu te mostro, moro no mesmo lugar, tenho o mesmo carro
Volkswagem, enfim, não mudei nada. Agora, eu fico espantado com companheiros
que a gente conheceu lá atrás e que hoje tem um... sabe?". Então teve um
descolamento da base. O PT perdeu os três grandes capitais que ele tinha. Que
eram ser o partido dos pobres organizados –porque hoje ele tem eleitores, não
tem militantes, ele tem de pagar rapazes e moças desocupadas para segurar
bandeirinha na esquina, quando tinha uma militância aguerrida voluntária.
Perdeu esse capital. O segundo capital que ele perdeu é o de ser o partido da
ética. Não é? A ideia do "não seremos como os demais". E o terceiro
capital era o de ser o partido da mudança da estrutura do Brasil. Não fez
nenhuma mudança estrutural. Fez muita coisa? Fez. Programas sociais; Bolsa
Família, embora eu discorde – o Fome Zero era emancipatório, foi trocado pelo
Bolsa Família, compensatório–; programas da educação; cota; Fies; uma série de
coisas excelentes. Política externa nota 10, na minha opinião, mas sem
sustentabilidade.
E
meio ambiente?
Ah, aí faltou muito. Aí eu dou nota... seis.
Defesa da Amazônia, não trabalhou suficientemente na questão do meio ambiente.
O
senhor falou desse espanto da mudança dos ex-companheiros. Como vê,
especificamente, o caso do ex-ministro José Dirceu?
Eu acho um abuso você prender um preso. O
cara estava preso, mandaram prender novamente. Não precisava. Aquela coisa:
transfere, Polícia Federal, televisão. Eu acho isso um abuso de autoridade.
Embora eu ache a Lava Jato extremamente positiva –era preciso vir uma apuração
da corrupção no Brasil séria como tem sido feita–, tem coisas que me
desagradam. O partido mais envolvido é o PP. Mas parece, na opinião pública,
que é só o PT. Segundo: por que é que vazam todos os conteúdos em relação ao PT
e porque é que vazam exclusivamente para a revista "Veja"? É chamar a
gente de idiota. Ou seja: há uma operação política por trás, de abuso desse
processo. Que é um processo sério de apuração da corrupção no Brasil.
Mas
e o caso específico do José Dirceu?
Eu nunca me pronunciei, você não vai
encontrar uma palavra minha em entrevistas, nos artigos, dizendo se houve ou se
não houve mensalão. Eu estou esperando o PT se posicionar. Se houve ou se não
houve. E fico indignado pelo fato de o partido não se posicionar. E não se
posicionar diante de uma figura tão importante do partido como ele [Dirceu].
Então não tenho meios de julgamento. Que eu sei que há corrupção na política brasileira,
sei. Mas eu não tenho provas. Eu saí do governo sem perceber se havia mensalão.
Saí em dezembro de 2004, o mensalão apareceu em maio de 2005. Várias pessoas me
perguntaram: "você tinha algum indício?" Nenhum. Não vi nenhum
indício.
Um
aspecto que chamou a atenção é que o José Dirceu faturou R$ 39 milhões com a
sua consultoria, parte disso no instante em que estava preso, foi um argumento
para essa nova prisão, mas coincide também com aquela vaquinha para pagar a
multa do mensalão.
Pois é. Eu fico indignado. Se é verdade que
ele tem tantos milhões na conta, eu não posso entender como é que ele promoveu
a vaquinha. Aliás, tenho amigos que contribuíram com a vaquinha. Estão
sumamente indignados. Eles se sentem lesados.
O
ex-presidente Lula já falou criticamente sobre o afastamento entre o PT e os
movimentos sociais. Por que ocorreu isso?
Ocorre no momento em que o PT faz a opção da
"Carta ao Povo Brasileiro", no primeiro governo do Lula. Era uma
carta aos banqueiros e empresários. Ali ficou sinalizado: "queremos
assegurar a governabilidade via elite, não via a nossas origens, que são os
movimentos sociais". Aí cria-se o Conselhão, para o qual são chamados
líderes dos movimentos sociais. Acontece que só o empresariado tinha voz e vez
ali dentro. E aos poucos esses líderes [dos movimento sociais] foram todos
deixando. E depois o Conselhão, que era um conselho de consulta e debate,
passou a ser um mero auditório de anuência dos anúncios da Presidência. E hoje
ele sequer existe. Ou seja, esse diálogo mínimo com a sociedade civil... É o
que a Dilma deveria fazer. Ela deveria criar um conselho político. Porque isso
não é um gesto de extrapolação. Está previsto na Constituição de 1988, está
normalizado isso. O Lula fez. Não como deveria. Deveria ter sido mais
democrático, o pessoal dos movimentos sociais deveria ter mais espaço, mas ele
fez. Nessa crise, não adianta a Dilma passar a mão na cabeça do Temer. Ela
tinha que ouvir a sociedade. Tem de sair do palácio, sair da toca.
Perde
contato com a realidade?
Outro dia eu fui para Irati, no Paraná, 14º
encontro de agroecologia. Eram 4.000 pequenos agricultores do Brasil. A Dilma
ia. A Dilma não foi. Ela não tem ideia do que ela perdeu ali. Lá, quando eu
cheguei, dizia-se que era o mau tempo. Não é verdade porque o Patrus (Ananias)
foi. Então se o jatinho da FAB do ministro desceu, o jatão da presidenta
poderia descer. Mas não importa. Não foi. Então ela tem de sair da toca, dar a
volta por cima. Ela está acuada. Não encara a nação, não vai nos movimentos
sociais.
Medo
de ser vaiada?
Não pode ter medo. Uma figura pública, medo
de nada. Tem de ir, se expor. Não tem como. Você é uma pessoa pública. O Lula
promoveu não sei quantos daqueles conselhos nacionais de saúde, de educação.
Era hora da Dilma fazer isso. Está aí o PNE, o Plano Nacional de Educação. Era
para ter um debate sobre a implantação do PNE. No entanto, a notícia que a
gente recebe é de cortes na educação. Ainda mais usando o lema que ela achou,
"pátria educadora". Isso tudo explica porque é tão baixa a aprovação
dela.
O
senhor é religioso. Que avaliação faz do avanço eleitoral e, principalmente, do
comportamento da bancada evangélica no Congresso?
Penso que está sendo chocado o ovo da
serpente. Uma das conquistas da modernidade, importantíssima, é a laicização do
Estado e dos partidos. Essa bancada está querendo confessionalizar a política.
Explico: eu sou padre ou pastor de uma igreja que considera pecado o cigarro e
a bebida alcoólica; e tenho a veleidade que toda a população nem tome bebida
alcoólica nem fume. Eu só tenho dois caminhos. O primeiro é converter toda a
população à minha igreja; isso é impossível. Mas o segundo é possível: eu
chegar ao poder e transformar o preceito da minha igreja em lei civil. Como
aconteceu nos EUA nos anos 20. E eu temo que o projeto deles seja esse, de
confessionalização da política. Uma forma de fundamentalismo tupiniquim,
altamente perigoso.
Exemplo?
Isso vai se manifestar agora no debate sobre
ensino religioso. Minha postura é simples: colégio religioso tem de ensinar
religião da entidade mantenedora, se é católico, judeu ou protestante. Bom, tem
muito colégio religioso que é mera empresa escolar. Aliás, os políticos mais
corruptos do Brasil saíram todos de colégios religiosos. É de se pensar: que
diabo andaram fazendo, que evangelização era essa? Mas, voltando, no ensino
público ou no particular laico, tem de ter o ensino das religiões. Ou você pega
o professor de história, que é qualificado para isso, ou você chama o padre
para falar do catolicismo, o pastor para falar do protestantismo, o médium para
falar do espiritismo, o pai de santo para falar do candomblé. Mas não dá para
pedir para o padre contar o que é o espiritismo, porque aí vai ter preconceito.
O que eles estão propondo aí é transformar os colégios em caixa de ressonância
de pregações fundamentalistas, tipo criacionismo contra o evolucionismo. Isso é
danoso à nossa cultura, à nossa história, à nossa religiosidade.
E,
na sua avaliação, porque os evangélicos cresceram eleitoralmente?
Para entender isso é preciso recorrer a um
livro do início da modernidade, fim da Idade Média, chamado "Discurso da
Servidão Voluntária" (Etienne de la Boëtie, 1530-1536). Mostra como é que
a cabeça de associação de pessoas é feita, de maneira que elas perdem totalmente
a consciência, o livre arbítrio, e se tornam cordeirinhos de qualquer um que
queira manipulá-las. É isso. Muitas igrejas transformam seus fieis em
cordeirinhos que, ameaçados pela teologia do medo, acabam seguindo a voz do
pastor naquilo que ele dita.
Nas
últimas décadas, igrejas evangélicas tiraram, efetivamente, muitos seguidores
da Igreja Católica. Basta ver o Censo. É notável também que, de maneira geral,
o evangélico parece hoje bem mais militante que o católico. É praticante. Qual
é a sua explicação para esse fenômeno?
Aí são dois fatores. Estudos estão mostrando
isso: quando havia Comunidades Eclesiais de Base havia menos evasão para as
igrejas evangélicas. Acontece que o papa João Paulo 2º e depois o papa Bento 16
fragilizaram as CEBs. Então hoje, o porteiro do prédio daqui da esquina, a
cozinheira da vizinha, a faxineira, elas não se sentem bem na Igreja Católica.
Se sentiriam nas Comunidades Eclesiais de Base, mas elas foram desmobilizadas
pela própria igreja, com medo se ser Teologia da Libertação, influência
marxista, progressista. Agora, com o papa Francisco, elas estão renascendo.
Estão
mesmo? Há sinais disso?
Estão. Teve um sinal bom em 2014, em janeiro,
quando teve o 14º encontro das CEBs em Juazeiro do Norte, eu estava lá, e o
papa mandou um documento saudando, foi muito importante. E apareceram 73
bispos. Há muito tempo não apareciam tantos. Porque aí elas estavam no sinal
amarelo –elas nunca foram condenadas–, mas estavam no sinal amarelo e agora
passou para o verde. Agora, ainda você não tem o corpo, como tinha nos anos 70
e 80, de bispos que invistam nisso. Ainda não tem. Os bispos que temos aí ainda
são todos os pontificado anterior: 36 anos de João Paulo 2º e Ratzinger. A
segunda razão é aquilo que o papa Francisco denunciou na Jornada Mundial da
Juventude. Houve uma burocratização da fé. Uso a seguinte imagem: Se você for
às 3h da madrugada numa igreja evangélica, você é acolhido, tem alguém lá para
te atender. Se você for às 3h da tarde numa católica, está fechada, tem uma
grade, o padre não se encontra e não tem nenhum leigo autorizado, como tem nas
evangélicas, para te orientar e te acolher. Não dá para competir. Eles sabem
fazer um trabalho personalizado. Olha os cinemas que se transformam em templos.
Sabe como eu chamo isso? A boca canibal de Deus. Né? Está ali na calçada; é só
passar e ser sugado (risos). Na igreja Católica, não. São distantes. Como é que
uma igreja evangélica começa? O pastor vai lá e aluga uma salinha de
escritório. Põe lá uma dúzia de cadeiras, uma mesa e pronto, vira um
mini-templo. E aí vai crescendo, porque o dinheiro entra. A igreja Católica
deveria aprender muita coisa boa com as evangélicas.
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