quinta-feira, 12 de novembro de 2015

# AGORA É QUE SÃO ELAS



Outro dia, conversando com um amigo – sim, uma pessoa do sexo masculino –, ele me alertou para a etimologia da palavra “feminismo”. Segundo ele, seria muito mais producente que a luta pelos direitos das mulheres tivesse outro nome, de preferência que não lembrasse tanto outra palavra bastante popular e que contamina nossas vidas diariamente: machismo. Eu me recusei e continuo me recusando a acreditar que somos tão preguiçoso(a)s ao ponto de não buscar ler e entender sobre um conceito que pouco conhecemos e, ao invés disso, optamos por nos opor a uma ideia baseado(a)s no achismo - e na presunção de que mudar a construção de um termo solucionaria toda a incompreensão sobre um movimento social tão importante como o feminismo.
 A confusão se dá quando temos duas palavras que conceitualmente não são opostas, mas possuem o mesmo radical em comum - “ismo” - sufixo de origem grega que exprime, dentre outras coisas, uma ideologia ou sistema político. E é exatamente isso que o machismo e o feminismo representam: conjuntos de ideias, crenças e valores que servem a projetos de sociedade distintos. O machismo é, ainda, um pensamento dominante, hegemônico, que sustenta a superioridade masculina sobre a feminina, cunhado dentro desse sistema patriarcal, ou seja, baseado na concentração de poder e autoridade da figura masculina e paterna sobre a família. É um tipo de mitologia viva que habita as mentes e sentidos humanos com a concepção de que homens e mulheres possuem diferenças biológicas significativas, e em função destas, é possível justificar a supressão de direitos e valores e a distinção de tratamento em relação às mulheres.
Historicamente, em função desse sistema de dominação que existe desde o período colonial no Brasil, as mulheres foram submetidas a diversas e diferentes formas de violência e supressão de direitos fundamentais, tais como a dignidade, a integridade e a liberdade. Por isso, primeiro as índias e depois as escravas foram subjugadas e exploradas sexual, social e psicologicamente. Por isso, a história tal como a conhecemos é a “história dos homens” e mal conseguimos nos enxergar nos espaços políticos, científico-acadêmicos, artísticos, místico-religiosos e profissionais. Por isso, só em 1887 a primeira mulher se formou em um curso do ensino superior. Por isso, apenas em 1933 as mulheres obtiveram direitos políticos e puderam ser incluídas no sistema democrático com a instituição do “voto feminino” (movimento sufragista). Por isso também que só a partir da Constituição Federal de 1988 que, legalmente, homens e mulheres passaram a ser sujeitos de direitos iguais – mesmo que apenas no papel. Por isso que até a década de 1990, não era permitido o direito à posse de terra por trabalhadoras rurais. Por isso que apenas em 2001, o chamado Pátrio Poder foi suprimido do Código Civil (para a lei, as famílias eram consideradas sistemas chefiados por homens). Por isso, nosso cenário passado e atual é repleto de casos de assassinatos e de violência contra mulheres; de baixa representatividade nos postos de responsabilidade e decisão; de diferença salarial para cargos e funções idênticas; de dupla jornada de trabalho e da permanente luta e resistência pelos direitos das mulheres. E hoje, no ano de 2015, pleno século XXI, ainda precisamos reafirmar nossos direitos enquanto seres sencientes, ou seja, capazes de sofrer e de sentir; e seres conscientes, ou seja, capazes de nos perceber como seres vivos em nossa realidade nesse mundo.
O feminismo foi e continua sendo uma denúncia a todas as formas de opressão, subjugação e supressão das mulheres na história da humanidade para anunciar que um projeto de sociedade no qual homens e mulheres tenham direitos IGUAIS, apesar de todas as diferenças, é possível, necessário e vital para a concretização de uma realidade mais justa, solidária, amorosa e democrática. Finalmente,  por entender que ao longo da história da espécie humana nesse planeta, estamos repetindo formas de opressões bastante similares no discurso e justificativas, cuja diferença principal se observa em relação às vítimas: indígenas, negro(a)s, homossexuais, transgêneros e mulheres (e agora animais não humanos). Reconstruímos a Grande Cadeia do Ser* de Aristóteles, retornando a mais de 300 anos antes do nascimento de Cristo, cuja ideia principal era hierarquizar seres – deus, anjo, demônio, homem grego livre, mulher, escravo –, e não seres, onde animais não humanos (os outros animais, exceto a espécie Homo sapiens) estão incluídos. E é por isso que eu não posso, não devo, não quero falar sobre o feminismo sem tocar numa questão que me é muito cara: a nossa completa falta de empatia pelas outras fêmeas subjugadas e exploradas pelo mesmo sistema que nos oprime. Sou feminista não só por mim e por outras mulheres da minha espécie, mas também me importo com o bem-estar e destino das outras fêmeas. Assim, ampliar nossa consideração moral é, para mim, abrir ainda mais as grades da jaula que nos aprisiona – em diversos níveis.
Algumas mulheres dirão que estou subutilizando um espaço de fala importante para o movimento. Outras, provavelmente pensarão que estou e/ou sou louca por tentar ampliar essa luta, arriscando enfraquecer o movimento, que às vezes nos parece já tão fragilizado. Mas me permito a licença de conectar o feminismo ao veganismo, que eu considero como uma nova concepção de valores, com a proposta de um novo e revolucionário projeto de sociedade. Uma sociedade que respeita os direitos fundamentais de todos os seres capazes de experimentar emoções e capacidades mentais. Uma sociedade que se horroriza com e repele a violência em todas as suas formas. Uma sociedade onde cada pessoa sinta a dor dos outros seres como se fosse sua e onde as diferenças biológicas não determinem as desigualdades, a discriminação, o tratamento diferenciado e nem a agressão. Essa sociedade que eu desejo e que eu começo a construir de dentro de mim para fora impossibilita a persistência do sistema patriarcal e machista porque lhes falta estrutura e mecanismos de reprodução para isso. Não vai haver machismo, racismo ou especismo. Serão conceitos obsoletos e práticas absurdas, que nos causarão pavor e vergonha. Algumas pessoas falarão que esse projeto de sociedade é um sonho, uma utopia. Mas, parafraseando Eduardo Galeano, para que existem as utopias, senão para caminharmos em direção a elas? 

 *Essa ideia da superioridade e dominação masculina também foi reforçada pela tradição judaico-cristã.


Denise Figueirôa Bacelar, 33 anos, bióloga, vegana, feminista e ativista. Também é recifense, com toda a dor e delícia que isso significa. 

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