Outro dia, conversando com um amigo –
sim, uma pessoa do sexo masculino –, ele me alertou para a etimologia da
palavra “feminismo”. Segundo ele, seria muito mais producente que a luta pelos
direitos das mulheres tivesse outro nome, de preferência que não lembrasse
tanto outra palavra bastante popular e que contamina nossas vidas diariamente:
machismo. Eu me recusei e continuo me recusando a acreditar que somos tão
preguiçoso(a)s ao ponto de não buscar ler e entender sobre um conceito que
pouco conhecemos e, ao invés disso, optamos por nos opor a uma ideia
baseado(a)s no achismo - e na presunção de que mudar a construção de um termo
solucionaria toda a incompreensão sobre um movimento social tão importante como
o feminismo.
A confusão se dá quando temos duas
palavras que conceitualmente não são opostas, mas possuem o mesmo radical em
comum - “ismo” - sufixo de origem grega que exprime, dentre outras coisas, uma
ideologia ou sistema político. E é exatamente isso que o machismo e o feminismo
representam: conjuntos de ideias, crenças e valores que servem a projetos de
sociedade distintos. O machismo é, ainda, um pensamento dominante, hegemônico,
que sustenta a superioridade masculina sobre a feminina, cunhado dentro desse
sistema patriarcal, ou seja, baseado na concentração de poder e autoridade da
figura masculina e paterna sobre a família. É um tipo de mitologia viva que
habita as mentes e sentidos humanos com a concepção de que homens e mulheres
possuem diferenças biológicas significativas, e em função destas, é possível
justificar a supressão de direitos e valores e a distinção de tratamento em
relação às mulheres.
Historicamente, em função desse
sistema de dominação que existe desde o período colonial no Brasil, as mulheres
foram submetidas a diversas e diferentes formas de violência e supressão de
direitos fundamentais, tais como a dignidade, a integridade e a liberdade. Por
isso, primeiro as índias e depois as escravas foram subjugadas e exploradas
sexual, social e psicologicamente. Por isso, a história tal como a conhecemos é
a “história dos homens” e mal conseguimos nos enxergar nos espaços políticos,
científico-acadêmicos, artísticos, místico-religiosos e profissionais. Por
isso, só em 1887 a primeira mulher se formou em um curso do ensino superior. Por
isso, apenas em 1933 as mulheres obtiveram direitos políticos e puderam ser
incluídas no sistema democrático com a instituição do “voto feminino”
(movimento sufragista). Por isso também que só a partir da Constituição Federal
de 1988 que, legalmente, homens e mulheres passaram a ser sujeitos de direitos
iguais – mesmo que apenas no papel. Por isso que até a década de 1990, não era
permitido o direito à posse de terra por trabalhadoras rurais. Por isso que
apenas em 2001, o chamado Pátrio Poder foi suprimido do Código Civil (para a
lei, as famílias eram consideradas sistemas chefiados por homens). Por isso,
nosso cenário passado e atual é repleto de casos de assassinatos e de violência
contra mulheres; de baixa representatividade nos postos de responsabilidade e
decisão; de diferença salarial para cargos e funções idênticas; de dupla
jornada de trabalho e da permanente luta e resistência pelos direitos das
mulheres. E hoje, no ano de 2015, pleno século XXI, ainda precisamos reafirmar
nossos direitos enquanto seres sencientes, ou seja, capazes de sofrer e de
sentir; e seres conscientes, ou seja, capazes de nos perceber como seres vivos
em nossa realidade nesse mundo.
O feminismo foi e continua sendo uma
denúncia a todas as formas de opressão, subjugação e supressão das mulheres na
história da humanidade para anunciar que um projeto de sociedade no qual homens
e mulheres tenham direitos IGUAIS, apesar de todas as diferenças, é possível,
necessário e vital para a concretização de uma realidade mais justa, solidária,
amorosa e democrática. Finalmente, por
entender que ao longo da história da espécie humana nesse planeta, estamos
repetindo formas de opressões bastante similares no discurso e justificativas,
cuja diferença principal se observa em relação às vítimas: indígenas,
negro(a)s, homossexuais, transgêneros e mulheres (e agora animais não humanos).
Reconstruímos a Grande Cadeia do Ser* de Aristóteles, retornando a mais de 300
anos antes do nascimento de Cristo, cuja ideia principal era hierarquizar seres
– deus, anjo, demônio, homem grego livre, mulher, escravo –, e não seres, onde
animais não humanos (os outros animais, exceto a espécie Homo sapiens) estão
incluídos. E é por isso que eu não posso, não devo, não quero falar sobre o
feminismo sem tocar numa questão que me é muito cara: a nossa completa falta de
empatia pelas outras fêmeas subjugadas e exploradas pelo mesmo sistema que nos
oprime. Sou feminista não só por mim e por outras mulheres da minha espécie,
mas também me importo com o bem-estar e destino das outras fêmeas. Assim,
ampliar nossa consideração moral é, para mim, abrir ainda mais as grades da
jaula que nos aprisiona – em diversos níveis.
Algumas mulheres dirão que estou
subutilizando um espaço de fala importante para o movimento. Outras, provavelmente
pensarão que estou e/ou sou louca por tentar ampliar essa luta, arriscando
enfraquecer o movimento, que às vezes nos parece já tão fragilizado. Mas me
permito a licença de conectar o feminismo ao veganismo, que eu considero como
uma nova concepção de valores, com a proposta de um novo e revolucionário
projeto de sociedade. Uma sociedade que respeita os direitos fundamentais de
todos os seres capazes de experimentar emoções e capacidades mentais. Uma
sociedade que se horroriza com e repele a violência em todas as suas formas.
Uma sociedade onde cada pessoa sinta a dor dos outros seres como se fosse sua e
onde as diferenças biológicas não determinem as desigualdades, a discriminação,
o tratamento diferenciado e nem a agressão. Essa sociedade que eu desejo e que
eu começo a construir de dentro de mim para fora impossibilita a persistência
do sistema patriarcal e machista porque lhes falta estrutura e mecanismos de
reprodução para isso. Não vai haver machismo, racismo ou especismo. Serão
conceitos obsoletos e práticas absurdas, que nos causarão pavor e vergonha.
Algumas pessoas falarão que esse projeto de sociedade é um sonho, uma utopia.
Mas, parafraseando Eduardo Galeano, para que existem as utopias, senão para
caminharmos em direção a elas?
*Essa ideia da superioridade e
dominação masculina também foi reforçada pela tradição judaico-cristã.
Denise Figueirôa Bacelar, 33
anos, bióloga, vegana, feminista e ativista. Também é recifense, com toda a dor
e delícia que isso significa.
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