Imagem: Campanha "Escola sem Mordaça" |
Contra uma suposta “doutrinação ideológica”,
estudantes defendem que professores universitários não possam abordar temas que
envolvam gênero, política, diversidade, ou quaisquer questões consideradas
“progressistas ou de esquerda” na sala de aula.
Docente de uma grande universidade particular
em São Paulo denunciou que estudantes estão boicotando suas aulas e gravando-as
sem autorização, com a finalidade de acusá-la de doutrinadora, inspirados no
projeto Escola Sem Partido.
A profissional argumenta que os temas
abordados em aula são da grade curricular prevista para o curso de Pedagogia.
Os estudantes criticam, por exemplo, o ensino da obra de Paulo Freire, pedagogo
e filósofo brasileiro, reconhecido internacionalmente e considerado o patrono
da educação brasileira.
Ao perceber que os episódios acontecem com um
grupo específico de professores, os docentes descobriram que há uma motivação
“religiosa” por trás das ações, que criam um ambiente de perseguição. “Há uma orientação das igrejas
evangélicas para que as alunas ou alunos que participam, se perceberem algum
conteúdo político, tenham a atitude de se retirar da sala de aula. Começamos a
perceber esse movimento e estranhar. Isso começou a se repetir em várias salas.
Eram conteúdos das disciplinas, mas que elas entendiam ser de cunho político”,
relata a professora que prefere não se identificar.
As disciplinas de políticas educacionais e de
educação popular, por exemplo, são consideradas doutrinação. Aulas envolvendo a
obra de Anton Makarenko, educador
ucraniano, também são alvo de críticas, direcionadas, inclusive, contra o
estudo de livros publicados no período em que Fernando Haddad ocupava o
Ministério da Educação (MEC).
"Começaram
a nos denunciar para os coordenadores, começaram a gravar a aula escondido. Uma
aluna chegou a ameaçar uma professora, enviando, via Facebook, uma foto dela
fazendo um gesto com uma arma na mão. Sem legenda, sem nada, mandou no privado
para uma professora com quem tinha tido uma discussão em aula sobre esse
tema", afirma a docente.
Na avaliação, ao tomarem essas posições, os
alunos refletem o avanço do conservadorismo e da “agenda moral” evangélica no
país, além de serem impulsionados por outros professores alinhados, por
exemplo, com as propostas do governo Bolsonaro.
“Alguns professores que se posicionam a
favor do Escola Sem Partido, convidaram os alunos a ir em marchas de apoio ao
Bolsonaro na Avenida Paulista. Não há contradição mais profunda que essa”,
comenta a professora, relembrando que grande parte dos estudantes do grupo
educacional privado moram na periferia da cidade.
Para a educadora, a perspectiva é que
episódios como esses cresçam pois há uma
pressão para que os docentes se enquadrem no “senso comum”. “Fica o professor tentando demover os
argumentos a partir do conhecimento científico e uma pressão para o
esvaziamento do sentido político da educação. Há uma pressão para o
esvaziamento porque esse professor acuado, sem respaldo institucional, tem a
tendência de se alinhar com essa pressão”.
Nessa situação, os profissionais,
principalmente os que atuam em universidades privadas, acabam passando por uma
autocensura. “Tem a questão do
emprego, do trabalho que está em risco. Eles jogam muito bem com isso. É um
esvaziamento do ponto de vista intelectual, do ponto de vista do que é
educação, do que nos propomos ao assumirmos essa tarefa”,
afirma.
Na opinião de Lisete Arelaro, professora titular sênior da Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo (USP),
a liberdade do professor de ensinar é essencial para a aprendizagem dos
próprios estudantes. A retirada da autonomia dos docentes, mesmo que não
institucionalizada, perturba a dinâmica da aula.
"A
confiança entre professor e aluno tem que ser total, tem que existir para poder
acontecer um verdadeiro debate. Se eu tenho medo do que será escrito ou se irão
gravar o que estou falando para me prejudicarem, é evidente que o professor se
constrange, começa a mudar a sua forma de comunicação, isso impede o
ensino", critica Arelaro.
Para ela as forças políticas favoráveis ao
Escola Sem Partido e seus adeptos, querem impor uma visão única de sociedade,
totalitária, da creche a educação superior. Ela reforça que a imposição de uma
narrativa política e social única, sem espaço para críticas, é uma afronta a
democracia.
POLÍCIA
DO PENSAMENTO
Assim como na obra 1984, de George Orwell (ficção científica que mostra um futuro
distópico onde a sociedade é vigiada constantemente pelo “Big Brother”), há
um policiamento do pensamento, consequentemente, uma onda de violência. No
início do mês, uma lista com cerca de 20 docentes e pesquisadores do Centro de
Filosofia e Ciências Humanas (CFCH)
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
foi veiculada nas redes sociais.
Sem assinatura, a carta acusou os docentes de
“doutrinação” e chamou pesquisadores de “petistas” “feminazis”, “travecos” e
“invasores”. Além da lista de nomes, as disciplinas e pesquisas das pessoas
listadas também são atacadas. Ao final, a carta anuncia “Vocês serão banidos! Escórias! O
mito vem aí!”.
Dois dias depois, uma nova carta intitulada “A
doutrinação vai acabar” circulou nas redes sociais, apresentando outras
ofensas. Apesar de se tratar de um documento anônimo, os autores se
autodeclaram como “soldados do Mito”,
em referência a Jair Bolsonaro.
Em nota, a UFPE repudiou a carta e afirmou que "não
admite, sob qualquer hipótese, que a violência ameace as liberdades de cátedra
e individuais" e que defende "a academia como espaço para
pluralismo de ideias". A Reitoria também
determinou a abertura de uma sindicância interna e comunicará o Ministério
Público Federal (MPF) e a Polícia
Federal para que os fatos sejam apurados.
A USP
é outra instituição de ensino acusada de “doutrinação”. Apesar de João Doria,
governador eleito no último pleito, ter se posicionado a favor do Escola Sem
Partido, Vahan Agopyan, reitor da USP, falou, em entrevista ao jornal O Estado
de S. Paulo, que não haverá um controle ideológico na universidade.
“Na
USP, é impossível. Obedecemos às leis, mas coisas que ferem nossa autonomia, a
USP não precisa seguir. Isso fere. A universidade é um locus de debate.
Formamos cidadãos”.
Fonte:
Brasil de Fato
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